A secretária especial de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, disse que, embora a Constituição de 1988 proíba a tortura e o Brasil tenha ratificado convenções da Organização das Nações Unidas (ONU) que condenam esse tipo de crime, a prática ainda persiste no país. Ela destacou a importância da criação no Brasil do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura, composto por 11 peritos que investigam locais onde há registro da prática e fazem relatórios sobre os casos que ocorrem. Flávia defendeu a formação de comitês estaduais de combate à tortura, de ouvidorias independentes e da investigação imparcial dessa prática.

O pau-de-arara foi um dos métodos empregados pelos torturadores durante os anos de Governo Militar. (Reprodução)

No Dia Internacional em Apoio às Vítimas de Tortura, lembrado hoje (26) pela Organização das Nações Unidas (ONU), a secretária também destacou a importância de uma política de reparação às vítimas. “A tortura ainda persiste na paisagem brasileira como um continuísmo autoritário do passado. Nós temos é que fortalecer as políticas públicas de prevenção, combate e erradicação”, disse, em entrevista à Agência Brasil, Flávia Piovesan, que foi  eleita na semana passada integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ela assumirá a função em janeiro de 2018.

Para o procurador do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ), Sérgio Suiama, a Constituição brasileira é democrática, mas a prática, aprofundada no período da ditadura, “não foi ceifada”, em grande parte por causa da impunidade que foi assegurada aos torturadores. Ele lembrou que, em 2010, o Estado brasileiro foi condenado pela CIDH a investigar e responsabilizar criminalmente os autores de violações de direitos humanos durante o período militar, como o desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia, mas a sentença não foi plenamente cumprida. “Não obstante o Ministério Público tenha proposto até agora 27 ações penais, a grande maioria dessas ações encontra-se paralisada com o argumento da prescrição e de anistia. A impunidade permanece mesmo após uma condenação internacional do Estado brasileiro”, afirmou.

Segundo o procurador, a partir da sentença, foi criado um grupo de trabalho no Ministério Público e foram ajuizadas as 27 ações a partir de 2012. O trabalho não se encerrou, mas essas ações envolvem 47 réus agentes da ditadura militar e 37 vítimas”, completou.

De acordo com Suiama, que é integrante do grupo de trabalho Justiça em Transição, do MPF, falta uma consciência no país para impedir o surgimento de outros casos. Mesmo no caso de reparações financeiras, este não é o aspecto mais relevante. “A reparação pecuniária é um dos aspectos da questão, mas o outro é justamente assegurar que não haja impunidade nos casos cometidos neste contexto. Isso ficou faltando em relação ao passado e ao presente. Esse quadro de impunidade permanece”, disse.

“Em delegacias de polícia, em sentenças provisórias, em penitenciárias, na rua. A prática de tortura é um fato notório. A falta de punição nesses casos só estimula a pessoa a continuar praticando, seja no presente ou no passado”, acrescentou.

Suiama afirmou que o fato de o Exército, até hoje, não abrir informações e divulgar documentos sobre violações de direitos ocorridas no período da ditadura impede esclarecimentos de casos como a morte, em 1975, do jornalista Vladimir Herzog, em São Paulo. “Eles têm documentos que podem ajudar nas investigações, mas sonegam esses documentos”.

A coordenadora da área institucional da Segurança Pública, da Justiça Global, a pesquisadora Isabel Lima, lembrou que os casos de tortura nos espaços de privação de liberdade, como presídios e instituições socioeducativas, atingem ainda idosos em casas de repouso, pacientes de instituições psiquiátricas, pessoas em situação de rua, a comunidade LGBT e pessoas trans. “A tortura é estrutural. Ela não é algo específico, praticado por determinado agente. Ela está entranhada como prática institucionalizada”.

Na opinião da pesquisadora, as torturas nesses casos atingem, em sua maioria, pessoas pobres, negras e moradoras de periferias. “A gente pode falar em certa aceitação e legitimação desses atos, dada a pouca divulgação, não só na morosidade do sistema de Justiça, mas na pouca indignação de maneira geral”.

Isabel Lima chamou a atenção para a não inclusão de pergunta sobre a ocorrência de tortura às pessoas, durante audiências de custódia. Para ela, a informação é fundamental na constatação da prática do crime. “A gente verificou que em 42,7% das audiências acompanhadas, as pessoas sequer foram perguntadas pelo juiz se sofreram alguma agressão no momento da detenção. Das 238 pessoas que foram ouvidas, 93 relataram terem sofrido alguma agressão e os relatos, muitas vezes, eram desqualificados ”.

Sobre casos de violações contra a população LGBT, Isabel afirmou que as discussões sobre o tema têm enfrentado um avanço conservador, com o desmonte de políticas públicas já adotadas. Ela lembrou que também ocorrem as subnotificações nos registros policiais, o que impede a avaliação correta dos dados. “Isso é muito grave porque continua alarmante o número de pessoas LGBT mortas ou agredidas e, principalmente, a população trans”.

ONU

A Organização das Nações Unidas (ONU) reafirmou que a tortura é grave violação de direitos humanos, mas que, em nome da segurança nacional, diversos lugares no mundo ainda utilizam essa prática, em desafio à absoluta proibição. Especialistas da ONU conclamaram os governos a pôr fim às condições que facilitam esse tipo de crime. Para eles, sob quaisquer circunstâncias, a tortura nunca pode ser justificada.

“A absoluta proibição da tortura e de outros tratamentos ou punições cruéis, desumanas e degradantes constitui-se a mais fundamental conquista da história da humanidade”, destacou o relator especial da ONU para o Combate à Tortura, Nils Melzer.

Segundo ele, qualquer tipo de tolerância ou aceitação dessa prática, ainda que de forma excepcional e argumentada, provocaria reflexos nocivos à humanidade. “Inevitavelmente, levaria a um declínio rumo à completa arbitrariedade e força bruta, o que seria uma desgraça para toda a humanidade”, observou.

Na visão do presidente do Comitê das Nações Unidas de Combate à Tortura, Jens Modvig, a tortura, uma das mais brutais violações de direitos humanos, destrói vidas e os governos precisam garantir que nenhuma justificativa permitirá a sua prática. “Os Estados precisam ser lembrados de que nenhuma circunstância excepcional pode ser evocada para justificar atos de tortura. O caráter absoluto da proibição se aplica a qualquer caso, incluindo o contexto do combate ao terrorismo”.

A presidente do Fundo Voluntário da ONU para Vítimas de Tortura, Gaby Oré Aguilar, disse que além de não permitir o crime, os governos precisam oferecer reparação e reabilitação às vítimas. “É igualmente importante que os Estados observem sua obrigação de fornecer efetiva reparação e reabilitação às vítimas de tortura e suas famílias, disponibilizando urgentemente recursos necessários para responder ao sofrimento de milhares de vítimas no mundo inteiro”. (Da Agência Brasil)