O poeta, escritor e crítico literário Silvério Duque resolveu, neste domingo (24), nos brindar com um texto que foge do habitual. Ao invés de fazer uma análise crítica de uma obra literária como nos textos anteriores, Silvério resolveu gastar suas palavras com uma paixão pessoal que também é a paixão de muitas pessoas ao redor do mundo, a saber, o clássico Star Wars ou em claro português, Guerra nas Estrelas.

Hoje Silvério resolveu abordar o sétimo episódio da série intitulado “Star Wars: o despertar da Força” e a febre que mexe com milhares de pessoas em todo o mundo e rende milhões de dólares. O filme do cineasta George Lucas é, sem sombra de dúvidas, uma série cinematográfica que se tonou quase uma religião. E possui adeptos em todos os cantos do mundo. A quarenta anos do primeiro filme, a série continua fazendo sucesso.

O sétimo filme da série recebeu o nome de “Star Wars: o despertar da Força”. (Imagem Divulgação)
O sétimo filme da série recebeu o nome de “Star Wars: o despertar da Força”. (Imagem Divulgação)

Para quem não conhece o nosso articulista, Silvério Duque é músico, poeta, escritor e crítico literário nascido, criado e educado em Feira de Santana. A cada 15 dias e sempre aos domingos, os leitores do Blog Bahia Geral serão brindados com a apresentação e análise crítica de uma obra literária contemporânea.

Há quinze dias, Silvério nos apresentou “O grito do mar da noite”, o mais recente livro do jornalista Emmanuel Mirdad.

A seguir, confiram o texto “Do mito à realidade: Uma extensão de nosso mundo ou vamos falar sobre Start Wars” de Silvério Duque sobre o sucesso Guerra nas Estrelas e o sétimo filme da série, intitulado “Star Wars: o despertar da Força”.

 

DO MITO À RELAIDADE:

UMA EXTENSÃO DE NOSSO MUNDO

ou VAMOS FALAR SOBRE STAR WARS?

 

aos amigos Gabriel Ferreira e Nózio Neto

A civilização avançada envolve problemas árduos. Por isso, quanto maior o progresso, mais está ameaçada. A vida está cada vez melhor; porém, evidentemente, cada vez mais complicada.

JOSÉ ORTEGA Y GASSET

 

Não há nenhuma novidade em saber que Star Wars: o despertar da Força, sétimo episódio de uma franquia de sucesso há quase quarenta anos, bateria todos os recordes comerciais que qualquer produção cinematográfica hollywoodiana se pretenderia. Mesmo para os padrões monumentais de hoje, onde as cifras acima de nove zeros já se tornaram comuns, para se falar de cinema de entretenimento, Star Wars impressiona. Porém, há muito mais nesse universo fabuloso do que meros quase U$ 3.000.000.000,00 de bilheteria, nas primeiras duas semanas de exibição (e olhem que, enquanto estou a escrever este artigo, o filme ainda nem chegou ao Oriente), pois tudo em Star Wars: o despertar da Força, assim como todo o universo onde ele se insere, é, de fato, grandioso e converge para si muito mais do que cifras.

É dificílimo dizer exatamente quais as razões que fazem tantas pessoas – estou falando de milhões, espalhadas por todo o nosso planeta – comportarem-se com verdadeira devoção diante de uma produção cinematográfica, e, mais ainda, representar uma importância real em suas vidas. Eu mesmo, um desses milhões que cresceram fantasiando um universo onde a tecnologia e poder mágico andam de mãos dadas, testemunhei o choro de fãs das mais diferentes idades, a emoção da surpresa em cada elemento referente aos primeiros filmes e a satisfação de ter tanto apego recompensado depois de tantos anos e algumas (também) grandiosas decepções. A verdade é que tudo em Star Wars: o despertar da Força nos transporta a um universo real e de grandezas igualmente reais (e mais uma vez não falo só de cifras) desde o momento em que um enorme cruzador desliza em meio ao espaço, apagando a imagem longínqua do planeta Jakku, e, por alguns segundos, quase esquecemos a infinita imensidão por onde ele passeia, para logo depois assistirmos boquiabertos ao apodrecimento de naves semelhantes que jazem nas planícies áridas de um planeta que há alguns segundos parecia ser engolido por elas. Mas esses jogos de proporções não acabam por aí, pois essas naves são devolvidas às suas grandezas quando diante delas vemos a imagem solitária e pequenina de Rey, uma catadora de sucata que se arrisca no imenso interior dessas naves em troca de comida. E é a partir daí que vemos outro lado maravilhoso e igualmente imenso de Star Wars que é o dos dramas humanos.

É difícil imaginar que, em uma história com proporções tão gigantescas – toda a geografia das batalhas não se prende simplesmente a um planeta, o que já seria demais para nossa mente, mas a uma galáxia inteira –, foque-se basicamente em dramas pessoais, no encontro aparentemente ao acaso – aparentemente, repito – desses dramas, no entanto, é exatamente isso que acontece em Star Wars: o despertar da Força. Numa galáxia carcomida por uma guerra civil milenar e de proporções igualmente galácticas, é impossível aos seus habitantes a neutralidade; cada um é empurrado, de uma forma ou de outra, a escolher um “lado” e por ele está disposto até mesmo a morrer. Aliás, algo muito comum em momentos de crise política, senão, olhem aí para as Linhas do Tempo de seus Facebooks, sempre a favor ou contra os mandes e desmandes do PT, e verão que essas coisas não pertencem a uma galáxia muito, muito distante…

Por isso mesmo, a personagem de Maz Kanata, cuja voz é emprestada pela expressiva Lupita Nyong’o, deixa bem claro a Rey que só uma única guerra existe: “a do bem contra o mal”, e a melhor maneira de identificar um do outro é quando, em nome de um, as vontades do outro prevalecem. Vou explicar melhor: é o caso de Finn, o stormtrooper interpretado por John Boyega, que não aceita matar um grupo de camponeses inocentes em nome de “algo maior”. Esse gesto de não deixar que suas ideologias, muito menos suas ordens, fiquem acima do que é certo, faz-se tão simbólico quanto o fato de Finn ganhar um nome no lugar de um número. Em outras palavras, é quando escolhemos o bem, a verdade e a retidão, que deixamos realmente de sermos mais um para finalmente sermos alguém.

Essa busca para saber quem realmente se é, catalisa toda a inesperada amizade entre Ray e Finn. Ela é alguém que sabe o que quer à espera de uma chance de buscar; ele, alguém que toma iniciativa de mudar, para depois fugir. Ele tem a chance, e até a cria, mas não sabe ou não tem uma razão para lutar; Rey tem todas as razões e vontades, mas não tem nenhuma chance até que a oportunidade surge com a fuga de Finn. No fim das contas, ambos devem aceitar o seu papel em toda essa batalha e fazer valê-lo. Até mesmo o grande vilão da história, Kylo Ren (devidamente incorporado pelo californiano Adam Driver), neto de Darth Vader, vive a dor desses conflitos que uma alma atormentada precisa passar, da mesma forma que seu avô também passara. Esses conflitos, aliás, não são um luxo apenas dos neófitos da Força, o próprio Luke Skywalker (Mark Hamil) se exilou nos confins da galáxia por sentir-se culpado pela falha de seu aluno Kylo; Léia (Carrie Fischer) e Han Solo (Harrison Ford) não ficam atrás, e sofrem a dor pela separação e da perda de um filho. Nem mesmo o velho droid R2-D2 escapa de uma crise de bipolaridade. Todo se encontra na mais completa instabilidade, menos os lados da própria Força: o lado da “Luz” e o lado “Obscuro” (quem quiser que fale “Negro” e aguente as consequências).

É muito interessante essa analogia que Star Wars sempre fez com a política e, em  O despertar da Força, não foi diferente, e diria  até intensificado. Vejam, por exemplo, como o discurso do General Hux (Domhall Gleeson) lembra os discursos nazistas de Nuremberg, o teor moralista deste mesmo discurso nos remete ao Fascismo europeu e ao uso do povo, com o fim de recrutar em suas camadas mais pobres, os novos soldados da Nova Ordem, como faziam os membros da Hitlerjugend na Alemanha nazista, ainda fazem os partidos comunistas de todo o mundo, ou, como aqui no Brasil, a UJS, por exemplo, tem feito anos a fio aos cabeças ocas de nossas escolas e Universidades. A própria Nova Ordem tem o apelo ao “fundamentalismo teológico” comunista de que fala Vladimir Tismăneanu. Assim se faz o lado negro da Força: objetivo é tudo, seres no caminho não são nada. Essa é a atitude do militante comunista e deve ser a de um stormtrooper, bem como a qualquer membro da Nova Ordem, como Finn, mas ele sente e entende isso, desviando-se do caminho maléfico antes que sua alma se corrompa. Em outras palavras, Finn se nega a uma prática muito comum ao Comunismo que é a planificação do ser humano em suas mais diferentes esferas. O que Finn, numa atitude nobre, mas com certo ar picaresco, busca é restituir tudo que tem de valor e tudo que lhe confere alguma autoridade para si mesmo. Na prática a Nova Ordem é como um partido comunista, não muito diferente dos nossos PT, PSTU, PSol, PCdoB, etc., e, para o Comunismo, o Partido é tudo, pois ele é o instrumento insubstituível da História que, em determinado momento a furtará. Essa ideia de fundamentalismo religioso oriundo da política da nova Ordem é conflitante com a abnegação e fé dos verdadeiros Jidis, ou da religião de fato, que nada mais é do que o caminho que se escolhe para se chegar ao Divino, o que no caso de Star Wars é representado pela Força. Uma religião sem Deus, ou a figura Antropomórfica de Deus, como é o Budismo que serve de base à Ordem Jidi, mesmo assim uma religião e uma religião de verdade, moldada nos melhores exemplos das de nosso planeta. Àqueles que veem na ideia da Força como uma negação do religioso, a frase de Han Solo, aliás, vem bem ao caso: “eu também pensava que uma força que regia tudo e a todos era baboseira, mas, hoje, eu sei que não é”.

Mas quando tocamos em questões como mito e religiosidade, que são, sem sombra de dúvidas, os pilares principais do universo de Star Wars e o segredo, talvez, de boa parte de seu sucesso e longevidade, falamos do pouco que há de verdadeiramente ruim neste universo, que nada mais é do que uma alegoria, um simulacro de verdade que em algum momento se quis verdadeiro. O poder dos símbolos contidos no universo criado por Jorge Lucas há quase 40 anos, mitologia grega, cristianismo, budismo, códigos samurais, tornam a história fundamentada e muito bem estruturada. Entretanto, quando a representação de um símbolo é confundida com o próprio símbolo que ela representa, temos um problema terrível; é o caso de muitos nerds – essa palavra não é sinônimo de inteligência – que, ao invés de se utilizarem de Star Wars como porta de entrada para o mundo de símbolos e mitos que fundamentam as trilogias, confundem-na com esse próprio mundo de símbolos e mitos.  O próprio criador da coisa acabou passando pela mesma confusão pela qual passam os fãs de sua criação, quando se acreditou cineasta e atribuiu à sua cria valores que ela não tinha, fazendo-se cego para suas verdadeiras qualidades. O resultado foram os episódio I, II e III que todos conhecem, mas quase ninguém tem coragem ou estômago para falar a respeito, com exceção da Camille Paglia, que, aliás, acerta em muita coisa, mas só naquilo que, acredito, o Jorge Lucas acabou errando e, por isso mesmo, saiu bem feito. Em outras palavras, Star Wars é uma fábula, deve ser encarado como fábula e nada mais.

Mas quero falar de coisas boas, 2015 está chegando ao fim, então falemos de coisas agradáveis. Vão duas realmente maravilhosas deste filme. A primeira: a mão certeira de J. J. Abrams, alguém que, em um determinado momento, revitalizou Star Trek, e por isso mesmo, era o homem certo para recuperar a chama de Star Wars que se consumia em um passado de glória remoto, como o Esporte Clube Bahia, sendo motivo até de piada pelos fãs do outro blockbuster. Como um fã confesso e devoto, Abrams não deu a Star Wars mais efeitos especiais e criaturas exóticas e chatas – foda-se, Jar Jar Binks –, mas aquilo que um fã confesso e devoto realmente queria, a revitalização daqueles pilares que fazem de Star Wars o que Star Wars realmente é e significa, trazendo para este filme diálogos realmente dignos, um roteiro que tivesse pé e principalmente cabeça, uma concepção visual realmente ampla e condizente com todo aquele universo, além da inserção de novos personagens dignos, como o robozinho BB-8, uma versão mais ativa e igualmente simpática de Wall-E, que muito bem se coadunam com os antigos personagens, aqueles com os quais gerações inteiras cresceram um dia. A segunda: a inglesa Daisy Ridley, de apenas 23 aninhos, que dá vida a personagem Rey. Poucas vezes nessa ou em qualquer galáxia reunir-se-ão tantas qualidades em uma só atriz (e ainda mais em uma “iniciante”) como as reunidas em Ridley: talento, carisma, entrega, beleza, vitalidade… A forma com que ela se dedicou para estar nesse filme é admirável e, em certos momentos, é visível o olhar dela para o Harrison Ford que extrapolava a atuação; ela estava orgulhosa por estar ali, não só como atriz, mas como alguém que, no mínimo, sabe, como ela mesmo já confessara em outras oportunidades, a importância dessa história para tantos e tudo que ela significa. Por isso, não seria pretensão dizer que o roteiro da história parece fluir dela e não para ela, e que o papel que um Harrison Ford ou um Mark Hamil desempenham com tanta verdade, não tem nenhum outro motivo que não seja Daisy Ridley.

À maneira de sua criação mais famosa e até hoje mais controversa, a série Lost, J.J. Abrams se empenhou em criar pequenos mistérios para serem resolvidos ao longo da nova trama e fechando muitos outros. Uma coisa, no entanto, já é certa: Star Wars: o despertar da Força, traz mais combustível a uma chama que nunca se apagou de verdade e que agora brilha mais do que nunca, principalmente porque, para além de suas bases mitológicas, suas referências histórico-políticas e simulacros de realidade, a maior “força” de Star Wars está no poder moral de seus antigos e novos personagens e, queira Deus, àqueles a quem Star Wars tenha um real significado e com ele se possa aprender algo de verdadeiro… Que a Força esteja com todos nós.

Candeias, 31 de dezembro de 2015.